lunes, 4 de julio de 2011

Os 'adotados' do franquismo

Reportaje de Bruno Rascão, publicado el 2 de junio de 2011 en la revista portuguesa Visão

Os bebés roubados do franquismo
Durante décadas, milhares de crianças foram afastadas das mães, logo após o parto, e entregues como filhos biológicos a outras famílias. O que começou como uma repressão política, logo após a Guerra Civil espanhola, converteu-se num negócio organizado por médicos, padres e freiras, que só agora se começa a investigar.


Bruno Rascão (texto, fotos e vídeo)




O primogénito de Juan José García e de Juana Aguilar nasceu a 24 de março de 1956, no Hospital de Cruces, em Bilbao. "Levaram-me o filho quando nasceu", denuncia Juan, de 79 anos. "Adormeceram a minha mulher durante o parto; a mim, mostraram-me um corpo e pediram-me 500 pesetas para o enterro", diz, assumindo que, na altura, não duvidou do que lhe disseram. "Naqueles tempos acreditávamos em tantas coisas!", acrescenta, com ar resignado e sem esperanças de voltar a ver o filho, que hoje teria 55 anos. Depois daquele episódio, o casal não aguentou continuar a viver em Bilbao. Emigrou para Barcelona e depois para Granada, onde vive desde 1978. Juana, de 78 anos, também está convencida de que o primeiro dos seus quatro filhos não morreu, e apenas gostaria que ele "soubesse que a mãe não o vendeu, nem o deu!"

Há cerca de um ano multiplicou-se o número de filhos que descobriram ter sido comprados, e de mães que passaram a perguntar-se sobre se a estranha morte dos filhos após o parto terá sido acidental e mesmo se terá ocorrido. Desde então, os comprovadamente lesados começaram a organizar-se em associações, que assessoram qualquer pessoa que suspeite de ter sido vitima de adoção ilegal. Segundo a Associação de Afectados por Adopções Irregulares (ANADIR), podem ter sido roubadas cerca de 300 mil crianças, em Espanha, entre as décadas de 50 e 90, e muitas delas nunca suspeitarão da sua verdadeira identidade biológica. A associação diz ter dados que permitem calcular que, em 2 milhões de adoções realizadas nessas décadas, 15 por cento basearam-se em certidões de nascimento falsas. Agora, as probabilidades de mães e filhos se encontrarem dependem, em grande parte, dos seus dados de ADN coincidirem.

Durante a ditadura o processo de adoção era complexo e demorado e a forma mais eficaz de "arranjar" um bebé era contornar a lei. Nesse caso, e por norma, os casais que queriam adotar recorriam à ajuda de um padre ou de uma freira, com ligações a clínicas e hospitais, onde os bebés eram roubados a mães que acabavam de dar à luz, e registados como filhos biológicos do casal adotante. O médico que realizava o parto recebia uma determinada quantia, por "gastos de internamento", e o silêncio das partes envolvidas selava o negócio.

Desde o início de 2011, a ANADIR já denunciou 542 casos, na Audiência Nacional, em Madrid, que foram aceites pela Procuradoria-Geral do Estado, o que nunca tinha acontecido. As denúncias apresentadas correspondem a supostos roubos de crianças em todas as comunidades autónomas espanholas, e provocaram uma avalancha de novos possíveis casos. Hoje em dia, só ANADIR já tem registados mais de 5 mil.
Marxismo e inferioridade mental

O roubo em massa de bebés recém-nascidos começa na década de 40, logo após o final da Guerra Civil espanhola. Segundo uma denúncia apresentada pelo juiz Baltasar Garzón, em 2008, até ao início dos anos 50, cerca de 30 mil crianças foram roubadas a mulheres republicanas detidas nas prisões, e entregues a famílias que apoiavam o regime do general Franco. Então não se tratava de um negócio, mas sim de uma reação política, contra as "íntimas relações entre marxismo e inferioridade mental". A tese era defendida pelo militar psiquiatra Antonio Vallejo Nájera que, autorizado por Franco, em 1938, criou o Gabinete de Investigações Psicológicas. No ano seguinte, o psiquiatra publicava um livro segundo o qual "militam no marxismo sobretudo psicopatas antissociais" e legitimava o roubo de crianças às mulheres republicanas, defendendo que "a segregação desses sujeitos desde a infância poderia libertar a sociedade de uma praga tão terrível".

Para o presidente da ANADIR, António Barroso - comprado em 1969 pelos pais adotivos, em Saragoça (ver caixa) - os casos da associação "não têm nada a ver com os roubos de crianças às presas republicanas", porque "aquilo era um tema político e isto foi um negócio". Estas estórias, que agora enchem as páginas dos jornais, têm início nos anos 50 e 60, "quando as mães começam a ir dar à luz aos hospitais", diz Barroso. Mas nem todas as associações e estudiosos do tema defendem essa opinião.
Por exemplo, Montse Armengou, jornalista que realizou um documentário intitulado As Crianças Perdidas do Franquismo, escreveu, num artigo de jornal publicado em fevereiro, que depois das prisioneiras republicanas os alvos passaram a ser "as mães solteiras" que "não tiveram outro remédio senão dar [os filhos] para adoção", porque era "impensável uma maternidade em solitário". Essa crianças iam "parar a famílias, 'como Deus manda'", e "o que começou como uma terrível repressão política, converteu-se numa repressão moral e num negócio disfarçado de caridade que terminou como simples tráfico de bebés".
Um bebé congelado

Embora, no último ano, o tema seja recorrente na imprensa espanhola e internacional devido às crescentes denúncias, já em 1982, a revista espanhola Interviu publicava uma investigação, denunciando uma rede de roubo de crianças, dirigida pelo ginecologista Eduardo Vela e por uma freira, conhecida como Sôr Maria. Tudo se passava na clínica San Ramón, em Madrid, sob o maior sigilo. Sôr Maria, que trabalhava como assistente social, encarregava-se de aliciar mães solteiras que não queriam ficar com o filho, ou de convencer outras de que o melhor era que o dessem para adoção, após o parto, a casais com posses económicas que educariam a criança segundo a doutrina cristã. No dia do nascimento, a mãe - normalmente menor - era internada na clínica San Ramón, bem como a falsa progenitora, que entrava por outra porta, simulando o estado de gravidez com uma almofada. Após o parto, o bebé era registado como filho biológico do casal adotante, que pagava por "gastos de internamento" um mínimo de 50 mil pesetas ao doutor Vela, diretor da clínica.

Noutros casos, com mães mais renitentes, o ginecologista comunicava-lhes que o bebé tinha morrido e, se necessário, mostrava-lhes um nado-morto guardado numa arca frigorífica. Esse bebé congelado foi imortalizado pelo fotógrafo da Interviu, Germán Gallego, que, em 1982, conseguiu entrar na clínica San Ramón. Embora, na década de oitenta, tenha sido aberta uma investigação sobre a adoção ilegal de bebés em Madrid, o processo acabou arquivado.

No ano passado, o doutor Vela, e Sôr Maria foram filmados por câmaras ocultas, durante a realização de um documentário para um canal de televisão espanhol. Sôr Maria tem 82 anos e continua ativa, na sua ordem religiosa; o doutor Eduardo Vela, hoje com 77 anos, continua a trabalhar como ginecologista, em Madrid, e a atender grávidas em consulta privada.

CASOS

Antonio Barroso (42 anos)

Antonio Barroso começou a ter dúvidas sobre a sua verdadeira identidade ainda era uma criança. Na escola, em Barcelona, alguns colegas diziam-lhe que não era filho dos pais com quem vivia, e, aos 13 anos, decidiu perguntar à mãe se tinha sido adotado. A resposta foi negativa. Depois, ao cumprir 18 anos, pediu uma certidão de nascimento, no Registo Civil na qual surgia como filho biológico dos pais adotivos e deixou de se preocupar com o assunto.

Vinte anos depois, em 2006, recebeu um telefonema de Juan Luis Moreno, um amigo de infância: "António, no hospital o meu pai, que está a beira da morte, acaba de me confessar que tanto os teus pais como os meus nos compraram em Saragoça a um padre e a uma freira." As análises de ADN confirmaram a revelação e António apresentou três denúncias para que o caso fosse investigado. O tribunal arquivou-as por considerar que o caso tinha prescrito, o que o levou a criar a ANADIR, Associação Nacional de Afetados por Adoções Irregulares.

Cármen Bailón Gallego (64 anos)

No dia 17 de novembro de 1967, Carmen deu à luz o primeiro filho, no hospital público San Juan de Dios, em Granada. Tinha 20 anos e recorda que "o menino começou a chorar e tudo", mas como não tinha cumprido os nove meses de gestação, o médico decidiu que o bebé recuperaria na incubadora. Naqueles anos, "havia freiras nos hospitais", eram elas que atendiam as mães, e Carmen pediu-lhes que a deixassem ver o filho. Diziam-lhe que, primeiro, devia recuperar a força, e apenas o marido e uma irmã viram o bebé na incubadora, horas depois de ter nascido.

No dia seguinte, uma freira comunicou-lhe que "o bebé não estava bem" e um par de horas mais tarde que "o menino tinha morrido". O casal não pôde ver o corpo do filho nem assistir ao enterro - as freiras disseram-lhes que "se ocupavam de tudo". Carmen, e os dois filhos que teve depois, só iniciaram os trâmites para saber a verdade há dois meses, quando entraram em contacto com a ANADIR. Uma das diligências foi consultar os arquivos do cemitério, onde os informaram que "ali não está" nenhum corpo registado com os apelidos da família.

Pepa Pérez (51 anos)

Pepa tinha apenas 7 anos quando morreu a sobrinha, Maria-Leonor, 13 dias depois do nascimento, a 28 de outubro de 1967. A irmã "padecia do coração" e a bebé nasceu aos sete meses de gravidez, no Hospital Virgen de las Nieves, em Granada. A recém-nascida foi para a incubadora e os pais voltaram à aldeia, a mais de 50 quilómetros da cidade, "porque trabalhavam e não podiam estar ali". Visitavam-na, aos fim de semana e durante os dias de trabalho telefonavam para ter notícias. A bebé "estava a evoluir muito bem", mas um dia receberam uma chamada do hospital a comunicar a morte da María-Leonor. "A minha irmã e o meu cunhado foram ao hospital buscar a bebé, e deram-lhes a menina embrulhada numa manta!", diz Pepa.

Há oito anos, a irmã contou-lhe, pouco antes de morrer, que tanto ela como o marido pensavam que "a filha que enterraram [no jazigo familiar] não era deles". Na altura, Pepa não ligou muito ao que a irmã lhe disse, mas "todas estas notícias nos jornais "deram-lhe "a volta ao estômago" e resolveu investigar a verdade "em memória" da irmã.

Agora, Pepa quer abrir o jazigo de família para que, se for possível confirmar que "a filha era deles e ficarmos tranquilos".

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